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E se os animais pudessem falar?

A história do laço entre um homem e um frango no meu Instagram chamou a atenção da Carol, que me convidou a escrever para seu livro. Mais do que a conexão entre eles, o que a sensibilizou foi como esse homem simples manifestou seu luto quando perdeu seu companheiro plumado.

Somos programados biologicamente para nos conectar aos outros. Disso depende nossa sobrevivência. A vinculação com membros de nossa própria espécie, e o luto decorrente da ruptura desse laço, é mais naturalizada. Ainda assim, há várias regras e expectativas sociais sobre por quem, de que forma e até quando o luto é aceitável.

A ligação com outra espécie, e luto pela sua perda, ainda é fonte de estranheza. Frequentemente incompreendido, visto como exagerado, esse pesar recebe pouca empatia coletiva. Felizmente, o conceito de ‘família multiespécie’ está saindo do círculo estrito da teoria sistêmica e ganhando visibilidade. Os pets conquistam, a cada dia, mais espaço na vida das pessoas e nas pesquisas sobre os benefícios desse convívio.

O impacto de uma perda é sempre imprevisível. Nos faz refletir, desconstrói crenças, nos vulnerabiliza e faz pensar em nossa própria finitude e na dos seres que amamos. Quem nunca ficou surpreso com sua reação diante da perda de uma figura pública de quem não se era nem mesmo fã?

Toda essa referência acadêmica não fez a mínima diferença para P, tutor do franguinho. Talvez ele tenha se surpreendido com sua intensa reação, quando o perdeu. Não quis entender nem explicar. Apenas vivenciou. Seu sistema cuidador interno, instintivo, estava acionado permanentemente. Assim como nas mães galinhas, seguramente tinha no seu radar o pio das aves de rapina, principais predadoras de “seu” filhote.

P. zelava pelo bem estar da avezinha, que o seguia como seu líder. Sem se dar conta, P. tinha ganho mais um identidade: pai do frango! Até dá para imaginá-lo sorrindo ao ver o bichinho correndo atrás dele. Sentia-se importante e especial. E como isso fortalece a autoestima!

P. segurou muito as lágrimas quando me contou que um gavião havia pego o franguinho. Sua dor era palpável. Provavelmente sua sensação de impotência e fracasso também. Consolei como pude. Discretamente, para não fragilizá-lo ainda mais. Validei cada parte da história de seu vinculo e os sentimentos que foram confortáveis de dividir comigo.

O luto pela perda dos animais que não são pets, na realidade, não diferem do luto pela perda dos pets ou de qualquer outro ser que seja significativo. Um laço significativo implica em investimento de tempo, afeto, cuidado, entre outros. Implica em um lugar diferenciado em nosso mundo interior. Não depende do tempo de convívio, mas sim do espaço que esse ser ocupa dentro da gente. O que ele representa. E pode ocupar tantas posições! A mais comum é a de filho. No entanto, em minha prática de atendimento de tutores enlutados não é raro ver o animal como protetor de seu humano, sendo fonte de encorajamento e conforto emocional. Isso pode ser inversamente proporcional ao porte do animal. Atendi tutores que tinham calopsitas e porquinhos da índia na posição de porto-seguros!

Ainda, o animal/pet pode representar uma parte nossa, carente ou potente, doce ou rabugenta, sábia ou inocente, por exemplo. Esses processos são inconscientes e não nos cabe julgá-los. Sempre fazem sentido no contexto do histórico de vínculos do tutor. O que gostaria de trazer aqui é que alguém tão amado, muitas vezes estrutura nossa vida na forma de rotina.

Confere previsibilidade ante um mundo mutante e oferece amor sem exigências ou conflitos. A perda desse “tanto” pode ser bastante desorganizadora. A ponto de ser necessário apoio profissional no enfrentamento do luto e reconstrução da vida.

Quem ama um animal sabe que não se trata “só” de um cão, gato ou frango. P. deve ter chorado bastante, longe dos meus olhos, sentindo cada uma das perdas que a morte de seu franguinho trouxe (deixou de ser seu pai, extinguiu a rotina de cuidados e o alerta constante, etc). Que o
afeto que trocaram tenha sido suficiente para aquela breve história de amor.

 

Patricia Vidal Hernández
Psicóloga especializada em vínculos e luto pela perda do pet
CRP 06/61098
Instagram: @ocitocina.vinculoseluto

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E se os animais pudessem falar?

A história do laço entre um homem e um frango no meu Instagram chamou a atenção da Carol, que me convidou a escrever para seu livro. Mais do que a conexão entre eles, o que a sensibilizou foi como esse homem simples manifestou seu luto quando perdeu seu companheiro plumado.

Somos programados biologicamente para nos conectar aos outros. Disso depende nossa sobrevivência. A vinculação com membros de nossa própria espécie, e o luto decorrente da ruptura desse laço, é mais naturalizada. Ainda assim, há várias regras e expectativas sociais sobre por quem, de que forma e até quando o luto é aceitável.

A ligação com outra espécie, e luto pela sua perda, ainda é fonte de estranheza. Frequentemente incompreendido, visto como exagerado, esse pesar recebe pouca empatia coletiva. Felizmente, o conceito de ‘família multiespécie’ está saindo do círculo estrito da teoria sistêmica e ganhando visibilidade. Os pets conquistam, a cada dia, mais espaço na vida das pessoas e nas pesquisas sobre os benefícios desse convívio.

O impacto de uma perda é sempre imprevisível. Nos faz refletir, desconstrói crenças, nos vulnerabiliza e faz pensar em nossa própria finitude e na dos seres que amamos. Quem nunca ficou surpreso com sua reação diante da perda de uma figura pública de quem não se era nem mesmo fã?

Toda essa referência acadêmica não fez a mínima diferença para P, tutor do franguinho. Talvez ele tenha se surpreendido com sua intensa reação, quando o perdeu. Não quis entender nem explicar. Apenas vivenciou. Seu sistema cuidador interno, instintivo, estava acionado permanentemente. Assim como nas mães galinhas, seguramente tinha no seu radar o pio das aves de rapina, principais predadoras de “seu” filhote.

P. zelava pelo bem estar da avezinha, que o seguia como seu líder. Sem se dar conta, P. tinha ganho mais um identidade: pai do frango! Até dá para imaginá-lo sorrindo ao ver o bichinho correndo atrás dele. Sentia-se importante e especial. E como isso fortalece a autoestima!

P. segurou muito as lágrimas quando me contou que um gavião havia pego o franguinho. Sua dor era palpável. Provavelmente sua sensação de impotência e fracasso também. Consolei como pude. Discretamente, para não fragilizá-lo ainda mais. Validei cada parte da história de seu vinculo e os sentimentos que foram confortáveis de dividir comigo.

O luto pela perda dos animais que não são pets, na realidade, não diferem do luto pela perda dos pets ou de qualquer outro ser que seja significativo. Um laço significativo implica em investimento de tempo, afeto, cuidado, entre outros. Implica em um lugar diferenciado em nosso mundo interior. Não depende do tempo de convívio, mas sim do espaço que esse ser ocupa dentro da gente. O que ele representa. E pode ocupar tantas posições! A mais comum é a de filho. No entanto, em minha prática de atendimento de tutores enlutados não é raro ver o animal como protetor de seu humano, sendo fonte de encorajamento e conforto emocional. Isso pode ser inversamente proporcional ao porte do animal. Atendi tutores que tinham calopsitas e porquinhos da índia na posição de porto-seguros!

Ainda, o animal/pet pode representar uma parte nossa, carente ou potente, doce ou rabugenta, sábia ou inocente, por exemplo. Esses processos são inconscientes e não nos cabe julgá-los. Sempre fazem sentido no contexto do histórico de vínculos do tutor. O que gostaria de trazer aqui é que alguém tão amado, muitas vezes estrutura nossa vida na forma de rotina.

Confere previsibilidade ante um mundo mutante e oferece amor sem exigências ou conflitos. A perda desse “tanto” pode ser bastante desorganizadora. A ponto de ser necessário apoio profissional no enfrentamento do luto e reconstrução da vida.

Quem ama um animal sabe que não se trata “só” de um cão, gato ou frango. P. deve ter chorado bastante, longe dos meus olhos, sentindo cada uma das perdas que a morte de seu franguinho trouxe (deixou de ser seu pai, extinguiu a rotina de cuidados e o alerta constante, etc). Que o
afeto que trocaram tenha sido suficiente para aquela breve história de amor.

 

Patricia Vidal Hernández
Psicóloga especializada em vínculos e luto pela perda do pet
CRP 06/61098
Instagram: @ocitocina.vinculoseluto